A cena punk brasileira se vê no centro de uma polêmica que mistura arte, política e um suposto caso de censura. A banda Garotos Podres, ícone do gênero, tornou-se alvo de um inquérito policial motivado por uma música lançada há quatro décadas. O fato, revelado pelo vocalista José Rodrigues Mao Júnior em vídeo nas redes sociais no fim de semana, reacendeu debates sobre liberdade de expressão e perseguição artística no país.
O inquérito e a denúncia da extrema direita
O caso teve início quando o baterista da banda, conhecido como Negralha, foi convocado para prestar depoimento a uma delegada de polícia fora do estado de São Paulo. O motivo do interrogatório, realizado por videoconferência, foi a letra da música "Papai Noel Velho Batuta", composta e lançada originalmente em 1985, no crepúsculo da ditadura militar brasileira.
A investigação foi aberta após uma denúncia feita por uma figura pública ligada à extrema direita. O denunciante alegou que a canção, uma crítica ácida à desigualdade social, "incita a violência contra pessoas de bem". Em sua argumentação, afirmou que a letra incentivaria a violência por "falar de sequestro e morte de uma figura lendária e que representa uma cultura mundial cristã".
A reação da banda e o absurdo do depoimento
Em vídeo gravado durante um show, o vocalista Mao Júnior narrou com ironia e indignação o teor do depoimento. "Essa semana, a delegada perguntou por videoconferência ao Negralha, nosso baterista, sobre essa canção. Ele teve que explicar que Papai Noel não existe", contou. O músico destacou o caráter anacrônico e preocupante da situação: "O pior é que isso é sério. 40 anos depois do fim da ditadura militar, nós fomos inquiridos num processo inquisitorial questionando as letras".
Segundo o relato de Mao, a delegada teria ficado emocionada durante o interrogatório. "Daí nosso amigo falou 'Papai Noel não existe'. Então a delegada chorou, chorou, chorou", revelou. O grupo emitiu uma nota de repúdio oficial em seu perfil no Instagram, classificando o fato como uma "tentativa de censura e perseguição".
Letra polêmica e impacto psicológico
A música em questão, "Papai Noel Velho Batuta", usa a figura do bom velhinho como uma metáfora para criticar a indiferença do capitalismo frente à pobreza. O refrão é explícito em sua mensagem: "Papai Noel, velho batuta/ Rejeita os miseráveis/ Eu quero matá-lo/ Aquele porco capitalista/ Presenteia os ricos/ (Cospem nos pobres)/ Presenteia os ricos/ (Cospem nos pobres)".
O caso teve um impacto profundo no baterista Negralha, o membro mais novo da formação. Curiosamente, ele nem havia nascido quando a música foi lançada, em 1985. A banda relatou que, desde o interrogatório, o músico passou a ter pesadelos recorrentes. Nos sonhos, ele se vê sendo interrogado "sob tortura" e acusado de ter sequestrado o Papai Noel.
Os Garotos Podres ressaltaram a ironia histórica do episódio. Eles afirmaram que, nem mesmo na época do lançamento original, durante o regime militar, a banda foi chamada para prestar esclarecimentos ao Departamento de Censura do estado. O fato de um inquérito ser aberto quatro décadas depois, em um período democrático, é visto pelo grupo como um sinal alarmante de retrocesso e de tentativas de silenciamento crítico.
O caso segue em investigação e levanta questões urgentes sobre os limites da liberdade artística, a instrumentalização do aparato policial para disputas ideológicas e a fragilidade da memória sobre os períodos de censura no Brasil. A polêmica envolvendo os Garotos Podres mostra como símbolos e discursos do passado continuam a ecoar e a provocar conflitos no presente.