
Imagine entrar num ônibus e, de repente, a viagem virar palco. Foi assim que os passageiros do centro de São Paulo se viram diante de uma cena incomum: atrizes negras com deficiência transformando o transporte público em espaço de discussão sobre exclusão social. A peça, que roda literalmente pela cidade desde a semana passada, é um soco no estômago da indiferença.
"A gente cansa de ser tratada como fantasma", diz Joana Dark (nome artístico), atriz cadeirante que interpreta uma mulher invisibilizada no próprio corpo. Entre uma baldeação e outra, o elenco mistura performance e realidade - quem é passageiro? Quem é personagem? Difícil dizer.
Ônibus como território político
O coletivo artístico por trás da iniciativa escolheu o transporte público de propósito. "Onde mais as pessoas fingem não nos ver todos os dias?", provoca a diretora Maria Ribeiro. Os diálogos cortam como vidro quebrado: falam de acessibilidade negada, olhares que desviam, políticas públicas que nunca chegam.
- Cenas improvisadas com reações genuínas dos passageiros
- Texto construído a partir de depoimentos reais
- Interações que duram exatamente o tempo de um trajeto entre duas paradas
Numa cara especialmente marcante, uma atriz cega "acidentalmente" esbarra num passageiro. A reação dele - entre o constrangimento e a negação - vira parte do espetáculo. "Isso aqui não é ficção, é documentário vivo", comenta uma espectadora que preferiu não se identificar.
Por que isso importa?
Segundo dados do IBGE, mulheres negras com deficiência são as que mais sofrem dupla discriminação no mercado de trabalho e no acesso à saúde. A peça, sem didatismo chato, joga esses números na cara da sociedade. Literalmente.
A montagem fica em cartaz até o fim do mês, percorrendo diferentes linhas que cruzam a região central. De quebra, os organizadores distribuem folhetos com informações sobre direitos básicos - coisa que, convenhamos, deveria ser óbvia, mas não é.
E aí, vai encarar esse espelho móvel? Quem embarca nesse ônibus-teatro dificilmente desce da mesma forma que entrou. A cidade nunca mais vai parecer a mesma depois de ver o que sempre esteve ali, mas insistimos em não enxergar.