
A noite na Terra Indígena Sararé não é mais a mesma. O que antes era um silêncio sagrado, pontuado apenas pelos sons da floresta, agora é violentado pelo ronco ensurdecedor de motores. Parece que o mundo está desabando lá fora, e de certa forma está — pelo menos o mundo como os Myky, Enawenê-Nawê e Paresi sempre conheceram.
Desde que os garimpeiros invadiram o território, no noroeste de Mato Grosso, a vida virou de cabeça para baixo. E não estou exagerando — é como se tivessem arrancado a alma do lugar e substituído por puro caos.
O Som Que Não Cessa
Imagine tentar dormir com o barulho de uma serra elétrica dentro do seu quarto. Agora multiplique por dez. É assim que os indígenas descrevem as noites em Sararé hoje. Os motores não param, nem de madrugada, transformando o descanso em um luxo impossível.
"A gente acorda assustado, as crianças choram", conta um líder que prefere não se identificar — o medo é tangível, quase dá para sentir no ar. Quem seria louco de desafiar esses caras armados até os dentes?
Fome e Doença: A Dupla Perversa
A situação é tão grave que chega a doer no estômago. A comida, que já era escassa, praticamente desapareceu. Os peixes dos rios? Contaminados ou espantados pelo barulho infernal. As caças? Fugiram para bem longe do tumulto.
E quando a doença chega... bem, aí a coisa fica realmente feia. Os postos de saúde, que nunca foram lá essas maravilhas, agora estão completamente desprovidos dos medicamentos mais básicos. Remédio para febre? Para dor? Esquece. É como ter um hospital sem médicos, sem equipamentos, sem nada.
Uma mulher idosa da comunidade me contou, com a voz trêmula, que passou três noites seguidas com dor de dente insuportável. "Rezei para dormir e esquecer a dor", disse ela. Em pleno 2025, no Brasil que se diz moderno.
O Que Dizem as Autoridades?
Ah, as autoridades... sempre tão presentes nos discursos e tão ausentes na prática. A Funai confirmou que recebeu as denúncias e está "acompanhando a situação". Polícia Federal? Diz que investiga. Enquanto isso, os garimpeiros continuam lá, destruindo tudo sem a menor cerimônia.
É revoltante, para ser sincero. Parece que a vida dessas pessoas vale menos, como se fossem cidadãos de segunda categoria em seu próprio país.
Um Povo Resiliente, Mas Até Quando?
O que mais me impressiona — e aqui falo com o coração na mão — é a resistência dessas comunidades. Eles seguem tentando manter suas tradições, seus rituais, sua cultura. Mas até quando?
Como preservar seus cantos quando não conseguem ouvir sua própria voz sobre o barulho das máquinas? Como passar conhecimentos ancestrais para as crianças quando elas não conseguem dormir à noite?
A verdade é que estamos testemunhando, em câmera lenta, a destruição de um modo de vida. E o pior: a maioria do Brasil nem sabe que isso está acontecendo.
Enquanto escrevo estas linhas, me pergunto quantas noites mais de barulho insuportável, quantas crises de fome silenciosas, quantas dores sem remédio essa comunidade ainda terá que suportar. E me recuso a aceitar que a resposta seja: "até que seja tarde demais".